"Vou lhe fazer uma oferta que ele não poderá recusar".
Saudações nobres,
A crítica de hoje é do
Duque. Ele aparece pouco por aqui, mas quando faz, traz algo incrível assim. A Rainha optou por não
adaptar as resenhas do conselho aos moldes das que ela posta. Mantendo assim, a
originalidade de cada um dos nobres presentes.
O
Poderoso Chefão – Mario Puzo – Editora Record – 461p
Se
esse Duque pudesse fazer uma oferta realmente irrecusável, sem dúvida ela seria
“leia esse livro”. Para quem gosta realmente de literatura, seria uma oferta
que não se poderia recusar. E não importa se o leitor já assistiu a adaptação
cinematográfica de “The Godfather”, ainda que não tenha gostado do filme (isso
é possível?). O livro em questão foi adaptado em uma trilogia, não reproduzido
fielmente em um filme. Considero importante destacar o que é adaptação de
verdade e o que é criação livre dos roteiristas (que, carinhosamente, eu chamo
de “fanfic” por não ter relação com a obra original, exceto as personagens). O
segundo filme adapta o trecho que o enredo narra sobre o passado de Vito
Corleone. Todo o primeiro filme é adaptação do livro e, cronologicamente, o
livro termina exatamente ao fim desse filme. Ou seja, toda a história
cronológica posterior ao fim do primeiro filme (basicamente, o enredo do
Michael Corleone no Segundo filme e todo o Terceiro filme) não é “adaptação”,
mas criação livre dos roteiristas.
A
adaptação cinematográfica de “O Poderoso Chefão” é meu filme favorito e é
considerada uma das melhores adaptações de livros já feitas. Tal fato dificulta
muito o trabalho de resenhar o livro original. Afinal, todos já assistiram ao
filme, certo? Quem não assistiu, assista, as adaptações são realmente
sensacionais. Conseguem retratar praticamente toda a história com grande
fidelidade e grau absurdo de detalhes, além de contar com atuações magistrais
de Marlon Brando, como Don Vito
Corleone e os (então) jovens Al Pacino, como Michael “Mike” Corleone, Robert
Duvall, como o consiglieri Tom Hagen,
e Robert De Niro como o jovem Vito Andolini/Corleone (já na sequência, “The
Godfather, part II”). Partindo desse fato, a primeira pergunta que devemos
responder é: se a adaptação cinematográfica é tão boa, por que alguém deveria
gastar alguns dias de sua vida lendo o livro? Principalmente para alguém que
não tenha gostado do filme.
Pois
bem, apesar de ser uma grande adaptação, bem fiel e detalhada, e ter duração
superior a três horas (somando-se ainda ao bom tempo que o segundo filme dedica
a narrar o passado de Vito Corleone), é impossível para o cinema retratar tudo
que o livro narra. O filme retrata bem a história, mas, com a quantidade de
histórias paralelas, muita informação é perdida por ser difícil de o espectador
acompanhar tudo e/ou relacionar o nome do personagem ao ator que o interpreta
(os atores são antigos e aqueles que ainda são famosos eram jovens, à época). A
qualidade incrível da direção e da interpretação também permitem que algumas
coisas que se passam pela cabeça das personagens seja interpretada na expressão
do ator, mas somente nos livros você consegue acompanhar com perfeição cada
ligação do enredo, o que torna a experiência infinitamente mais agradável e
completa.
O
livro permite que você “entre” na cabeça das personagens. Quando se tem
personagens tão bem criados e com tamanha capacidade, entender a linha de
raciocínio dos protagonistas se torna uma experiência realmente fascinante.
Além disso, diferente no livro, fica bem claro a função de cada homem do
Império Corleone.
“Um dos homens, procurando explicar isso a
seu caporegime, disse:
- Este país tem sido bom
para mim.
Depois que essa história foi
contada a Don Corleone, ele retrucou raivosamente para o caporegime:
- Eu fui bom para esse rapaz”
Mario
Puzo conhece bem a estrutura de uma famiglia
da Cosa Nostra. Explica a famosa omertà (a lei do silêncio da Máfia) e
cita sua origem. Explica a repulsa que os mafiosi
tinham ao Estado. E demonstra claramente que um grande Don tinha sua própria
ética, que não necessariamente teria a ver com a legalidade, mas não era um
homem sem escrúpulos. De um modo leve, enquanto apenas narra o enredo, o livro
demonstra a estrutura da máfia italiana. Vê-se claramente a separação da máfia
em famílias e as relações entre elas, que não são necessariamente hostis. Ele
passa rapidamente pela história da fundação da Cosa Nostra, explicando que, do ponto de vista dos mafiosos, a sua
forma de agir é apenas um mecanismo de autotutela, ou, no mínimo, de defesa.
A
Cosa Nostra talvez não seja mais a
organização mafiosa italiana mais poderosa na atualidade, mas certamente é a
mais famosa do mundo por ter sido a exportada para os Estados Unidos. Na
maioria das vezes, quando alguém se refere a “máfia italiana”, está se
referindo à Cosa Nostra, por ter sido
o estilo de organização que atuou nos Estados Unidos. Conhecedor de tal
informação, esse Duque se chocou quando um personagem real e conhecido em todo
o mundo, Al Capone, foi citado em algumas passagens. Don Corleone se dirige ao
“Scarface” como “napolitano”, que “não deveria se meter em negócios de
sicilianos”. A passagem pode chocar, pois não há referência direta à
participação de Al Capone no enredo da adaptação cinematográfica. Mas sim, o
protagonista de “O Poderoso Chefão” é poderoso o suficiente para “enquadrar”
aquele que, na época em que a situação se passa no livro, era “o inimigo
público nº 1” dos Estados Unidos. A minha agradável surpresa foi saber que Al
Capone tinha origem “Napolitana”. Entre aspas, porque a família do gangster
real não era exatamente de Napoli,
mas da região da Campania (região que
Napoli é a principal cidade).
Tecnicamente, como “napolitano”, Al deveria ser da Camorra, outra organização criminosa (de origem napolitana e,
diferente da Cosa Nostra, de origem
metropolitana e não rural), não da Cosa
Nostra. Com essa informação que, apesar de ser um grande entusiasta da
cultura e história italiana, eu desconhecia, passei a pesquisar rapidamente
sobre Al. A conclusão foi que, a despeito de não ser realmente siciliano, Al
Capone participou, de fato, da Cosa
Nostra americana. Apesar de ser informação irrelevante para o enredo, que
se desenvolveria bem sem ela e se encontra em apenas uma frase (“Por que um napolitano tem de se meter numa
briga entre sicilianos?”), despertou todo esse interesse e permitiu essa
chuva de informações. Resolvi incluí-las na resenha para demonstrar o quão bem
feito foi o trabalho que Mario Puzo executou, ao escrever um preciso romance
envolvendo a Máfia Italiana.
Como
praticamente toda a história se desenvolve dentro de uma família mafiosa, a que
era a mais poderosa dentro da cidade de Nova Iorque, é possível aprender
claramente o trabalho e a forma de agir do Don, “o Padrinho”, “capo di tutti i
capi” (chefe de todos os chefes, por tecnicamente funcionar como o líder das 5
famílias de Nova Iorque), de seu conseglieri,
dos caporegimi e os soldados. Nada
disso fica perfeitamente claro no filme, sequer qual a posição exata de cada
integrante da família. A todo momento é possível perceber como o Don, apesar de
extremamente respeitado em todo o país, está protegido das autoridades por uma
rede muito maior, ainda que algum subalterno quebre a omertà. O livro deixa claro que a famiglia Corleone é a mais poderosa das 5 famílias de Nova Iorque
no início do enredo, enquanto nos filmes a impressão que se tem é que é igual
ou, talvez até inferior, à família Barzini.
Também
fica claro que o comando dos “negócios de família” não é necessariamente
hereditário. Desde o início do livro, Don
Corleone já está em busca de um sucessor. Enquanto no filme dá a impressão
que o primogênito Santino era o herdeiro óbvio da família, o livro deixa claro
que Vito não pretendia deixar o comando da sua organização com o primogênito.
Assim, quando Michael volta da Itália após a morte do irmão e assume a função
de Don, nenhum leitor se pergunta o
porquê da escolha, quando Fredo era mais velho. Michael sempre foi a escolha
óbvia de Don Corleone, mesmo quando
pretendia se afastar dos “negócios”. Vito realmente era frustrado com a
impetuosidade de Sonny, tendo muita dificuldade de “educar” seu primogênito nos
negócios da famiglia, embora ele
tivesse um inegável talento “militar”.
Essa
visão da família e sua estrutura não fica tão clara no filme, onde os
caporegime’s parecem apenas outros gangsters. Luca Brasi também recebe uma
importância muito maior na literatura. Aliás, Luca Brasi merece capítulos a
parte, pois apesar de não ter alta hierarquia dentro da família, não sendo um
caporegime, é um gangster diferenciado.
“Há cerca de 15 anos, alguns indivíduos
queriam apoderar-se dos negócios de importação de azeite do meu pai. Tentaram
matá-lo e quase conseguiram. Luca Brasi foi atrás deles. O fato é que ele matou
seis homens em duas semanas, e isso acabou com a famosa guerra do azeite”
Não
há dúvidas que Luca Brasi é a personagem mais injustiçada pela adaptação
cinematográfica de “O Poderoso Chefão”. Descrito no livro como um “homem para intimidar o próprio diabo no
inferno”, Luca Brasi foi retratado como um gangster comum, muito forte nos
cinemas, cuja morte não parece alterar o poder da família como os ferimentos do
Don.
A
Família Corleone tinha centenas, talvez milhares, de gangsters. Mas Luca Brasi
não era “mais um”. Aliás, se tinha uma coisa que Luca Brasi não era, é “comum”,
ele “pertencia a uma espécie rara de
homens”. Era um dos pilares do poder da Família Corleone, junto com o
intelecto e habilidades diplomáticas do Don, que garantia a ele proteção e
influência com o governo (influência baseada na história real de Frank
“Primeiro Ministro” Costello). A habilidade real de Brasi era de “exército de
um homem só”. Sozinho, o gangster era capaz de fazer serviço de dezenas de
soldados. Isso dificultava muito comprovar ser ele o autor das atrocidades,
porque não havia comparsa para delatá-lo e porque era difícil acreditar que
tudo fora serviço de apenas um sujeito. O passado de Luca Brasi é algo
realmente assustador. Demonstra claramente o porquê de ser um homem capaz de
intimidar o próprio diabo no inferno, mas, para saber sobre isso, será
necessário ler o livro. Não consigo reproduzir o acontecimento do forno.
Enquanto,
no cinema, parece ser apenas um homem muito forte e abobado, sem qualquer
relevância para o desenrolar das histórias, o livro demonstra a razão para a
qual a família Corleone mostrava tanta tranquilidade em saber que Luca
protegeria e vingaria Vito Corleone, quando ele foi baleado.
Luca
Brasi, no enredo, foi um dos principais responsáveis pela vitória da Família
Corleone na guerra do azeite, que se passa quinze anos antes dos eventos do
livro. Também foi o responsável por intimidar Al Capone, matando sozinho dois
de seus principais soldados, ambos enviados a Nova Iorque para matar Don Vito, também anterior aos
acontecimentos do livro. É um dos pilares do poder e o principal responsável
pela intimidação e proteção de Vito Corleone. Não é à toa, portanto, que
Michael demonstra grande empolgação ao encontrar “seu próprio Luca Brasi” em
Albert Neri. A perda de Luca Brasi somente foi reparada quando Clemenza encontra
Albert Neri e o indica para o novo Don, Mike Corleone.
A
morte de Luca Brasi abalou bastante a força da família Corleone. Mesmo os
caporegime’s temiam o desenrolar da guerra contra o Turco Solozzo. O filme
demonstra certo abalo nos principais membros da família, mas não demonstra o
desespero que Sonny e seus subordinados sentiram ao acreditar em uma possível
traição de Brasi. Mas Luca Brasi jamais trairia seu Don, que era a única
coisa/ser que ele realmente temia e idolatrava.
“Homens realmente grandes não
nascem grandes, tornam-se grandes”
A
adaptação cinematográfica consegue demonstrar o grande crescimento dos dois Don Corleone. O Segundo filme, com Don Vito, e o primeiro com Don Michael. O desenvolvimento de Mike é
uma adaptação perfeita, o de seu pai, nem tanto. O segundo filme mostra um
pouco do passado de Vito Corleone, por que saiu da Itália, como se tornou
respeitado nos EUA, como conheceu Clemenza e Tessio. A partir daí, não vai
muito adiante. O livro vai. Conta sobre a guerra do azeite, como a família
Corleone surpreendeu as famílias rivais e se consolidou como a mais poderosa de
Nova Iorque. É realmente espetacular.
Verifica-se
o brilhantismo de Vito não apenas em conquistar alianças e fidelidade de seus
subordinados, mas também em tática e controle de território. A divisão de seus
regime para manter os territórios e surpreender os rivais foi incrível.
Naturalmente, Michael não nasceu sabendo. O filme faz parecer que a transição
do comando da família entre Vito e Mike seja instantânea e não é. Apesar de ser
o herdeiro natural de Vito e ter características muito semelhantes, Vito passou
a ensinar pessoalmente Michael por um bom período, antes de transferir o
comando da família. A única coisa que o novo Don demora a entender é como dizer “não” às pessoas a quem você
gosta, afinal, você não pode dizer não a quem você gosta.
Sonny
também teve esses ensinamentos. Mas desde o primeiro capítulo fica claro que
ele não nasceu para isso e não assimilava bem as lições, diferente de seu irmão
mais novo. Ainda assim, também foi uma personagem muito injustiçada nos filmes.
Ele tinha seus méritos. Poderia não ser um bom Don, como de fato, Vito lembra
que nunca achou que Tom Hagen não fosse um bom consiglieri, ele apenas não achava Santino um bom Don. Mas era um bom Caporegime e um bom líder
militar dentro da famiglia.
Por
fim, é incrível que, mesmo “ausente”, Don
Vito Corleone prevê e adverte Mike sobre o que aconteceria em sua sucessão e
como lidaria com ela. Mike demonstra sua sabedoria ao seguir os ensinamentos do
pai e força ao lidar com sua previsão, no final do enredo. E, se o filme deixa
subentendido que Kay Adams descobriu o que seu marido se tornou, o livro deixa
muito claro.
Foi
uma resenha difícil de escrever, não pelo tamanho que acabou ficando, mas para
controlar o ímpeto de digitar uma tese de doutorado sobre ele, em vez de uma
resenha. Sem dúvidas um dos meus livros favoritos, ainda que eu o tenha lido já
sabendo o desfecho. Como a maioria das pessoas, vi os filmes primeiro.
Nota:
5 de 5.
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